No rasto do sol

segunda-feira, dezembro 13, 2004

A menina dos olhos

Para J.

"Esta miúda tem uns olhos...!". Cresci a ouvir esta frase, um elogio tantas vezes repetido, banaliza-se. Sempre tive olhos azuis, os olhos azuis do pai. As janelas da alma que traduzem a identidade da família. Tornou-se um hábito ser admirada pelo sexo oposto (e invejada pelas outras) pelos meus olhos, como tal, sentia que se não fossem estes ninguém me acharia gracinha nenhuma.
Já nos tempos de colégio, distinguia-me dos outros meninos de bibe amarelo, por ser 'a menina dos olhos'. Corria despreocupada pelo recreio, sem me importar com absolutamente nada e, nessa altura, já sabia tirar partido dos meus olhitos. Sempre que queria alguma coisa, olhava as pessoas nos olhos, com carinha de canito abandonado e acabava por dar a volta à situação.
e depois vieste tu. Num jantar qualquer, com amigos comuns, uns copos a mais numa noite quente de fim de verão. Apaixonei-me pelo tom de voz com que afirmaste: "Deves ter ouvido toda a vida que tens uns olhos lindos... e é verdade!... mas do que eu gosto mesmo é da alma com que olhas, do brilho que cada olhar imprime ao teu rosto de miúda rebelde!". Conquistaste-me! Fiquei rendida à tua técnica de sedução. O primeiro homem a ver-me para além dos olhos.
Três anos e meio de uma relação intensa e arrebatada. Sempre a sorrir, com uma luz mágica, própria de quem vive apaixonado e um palmo acima do chão. Um amor maior que o tempo e que o espaço que nos uniu. Encontrei-te numa curva da vida e percebi que me ias tatuar a alma e a pele. Não me sentia sequer capaz de cogitar a minha vida sem ti, quanto mais vir a esquecer que um dia havias feito parte dela.
Só que o mundo girou e a história desta estória acabou por sofrer uma reviravolta. A verdade indesmentível do nosso amor maior, sucumbiu à separação e à ausência.
Um dia, do nada, chegaste com a notícia da tua partida. Ias fazer uma pós-graduação para os Estados Unidos e não tinhas data para voltar. Era incomportável largar tudo para ir contigo, pelo que, foi inevitável dizer adeus. Ambos sabíamos que o amor resiste a tudo menos à distância... não valia a pena alimentar ilusões e falsas esperanças. Ficar longe implica dividir as estórias, crescer afastado, não partilhar novas experiências e vivências. Nós que fôramos um só, desde o primeiro dia, íamos evoluir para lados opostos e o rumo das nossas vidas estava condenado a bifurcar-se.
Chorei em silêncio. Lágrimas contidas de quem tem a alma desfeita. Ir embora era o melhor para ti e, eu sabia-o por mais que doesse fundo, quem ama quer o melhor para o sujeito amado. "Vai, meu amor, vai e não percas nunca a certeza de que o mundo é todo teu!".
Custava-me tanto ver-te partir, como a ti deixar-me ficar para trás. Mas as coisas são mesmo assim e não havia volta a dar-lhes.
Na nossa última noite juntos, trouxeste-me um dos maiores 'romances' da poesia lusa, Alexandre O'Neill e, com os olhos marejados de lágrimas, disseste-me um Adeus Português (um dos meus poemas favoritos)... "Nesta curva tão terna e lancinante, que vai ser, que já é, o teu desaparecimento, digo-te adeus e, como um adolescente, tropeço de ternura por ti".
Foi-me, de todo, impossível conter as lágrimas. Ouvir-te pronunciar tais palavras, trouxe-me à memória a noite da nossa descoberta. Apaixonei-me pela melodia da tua voz, a mesma que agora embalava o instante da despedida. Fiquei com o olhar perdido no vazio, era impossível conservar a alma se ia perder a luz.
Acordámos com os primeiros raios de sol a fazerem-nos festinhas no nariz. O percurso até ao aeroporto foi feito num silêncio de cortar a respiração. Sentia-me incapaz de proferir qualquer palavra, não tinha coragem de pedir que ficasses. Não merecias isso, nem eu e muito menos a nossa relação... ias culpar-nos, o resto da vida, se desperdiçasses tal oportunidade. Sempre foste o melhor, tinhas que te juntar aos melhores.
Conduzi-te até à sala de embarque. Caminhámos lado a lado. era imperativo separar caminho ali. "Amo-te! Vai e não olhes para trás, tens uma vida inteira à tua espera, segue em frente, abre os braços e o coração para receber o que ela te oferece. Vai e não percas nunca a certeza de que o mundo é todo teu!". E fiquei a ver-te ir embora, perdido e cheio de medo, num pássaro enorme que te ia levar para um novo capítulo.
Escusado será dizer que os tempos que se seguiram foram terrivelmente dolorosos. Demorei muito a ser capaz de aceitar convites para sair. Sentia-me incompleta, mutilada, faltava-me o sorriso fácil e espontâneo, tinha visto perder a minha outra metade.
Sabia (e consumia-me sabê-lo) que mesmo que um dia regressasses, nada seria como antes, tu e eu ter-nos -íamos tornado pessoas diferentes daquelas que um dia se amaram e acabaríamos por não ser mais do que dois estranhos.
Só que, na vida, as coisas nem sempre se revelam conformes ao que pensamos ser imperativo. Há, na verdade, muitas verdades.
O mundo tornou a girar e a mesma vida que te havia arrancado dos meus braços dois anos antes, trouxe-te de volta. Fui ao aeroporto buscar-te. E, mais uma vez, calámos as palavras. só o amor, só o nosso amor, existe!
E valeu a pena a espera, a dor da ausência, a infantil esperançazinha que me fez 'esperar por quem não disse que vinha', valeu a pena! Já dizia a poetiza, "Tudo vale a pena quando a alma não é pequena"! E, a nossa alma é enorme, tão grande como o amor que nos voltou a juntar.
Passou tudo e agora observo-te a dormir, em todas as noites iguais a esta, nos meus braços, do lado direito da cama e da minha vida... aninhado neste sentimento desmedido que faz de nós um só... como na fotografia que está na nossa mesa de cabeceira a exibir o nosso melhor sorriso.
E viver é isto. Ser a menina dos olhos de alguém que nos lê a alma, no primeiro instante, para fazer parte dela... a cada amanhecer, o resto da vida, enquanto houver caminho.