No rasto do sol

quinta-feira, novembro 03, 2005

Lugar do coração

Para o Manel, o post prometido.
Chegou o Inverno...
Há vários dias que chove incessantemente, o sol foi embora e a luz mágica desta cidade esconde-se por trás das nuvens. Esta Lisboa que eu amo, cinzenta e sombria, rendida e apagada. Deve ser da saudade, por causa dela, por causa de ti que a vejo assim. Será que nessa terra que te acolhe também chove assim? E terá a chuva o mesmo cheiro?
Quando me envolvi contigo sabia, à partida, que um dia acabarias por me deixar; não por falta de amor mas, por esse ímpeto de conhecer novos mundos, essa sede de viver que nunca te permitiu criar amarras. Apaixonei-me por ti, por isso e apesar disso... mesmo sabendo que ficaria cativo e que a dor infligida pela tua ausência seria uma inevitabilidade.
Escolhi viver esta estória, sem promessas ou juras de amor eterno. Agarrei o instante e entreguei-me a cada momento como se não houvesse amanhã. Durante meses escrevemos um diário de partilha, o relato sublime de uma paixão maior que me fez andar um palmo acima do chão. Pela primeira vez.
Eu sei que não é suposto os homens dizerem estas coisas, mas a verdade é que te amei realmente e de forma arrebatada. Pelo teu cheiro, pela tua contagiante gargalhada, pelo teu enorme cabelo sempre desalinhado, por esses olhos cor de mel, por tudo e mais alguma coisa.
Apaixonei-me por ti como nunca me havia apaixonado por coisa alguma nesta vida. Como um drogado, senti a angústia da ressaca do teu amor. Que vida é esta que te trouxe, me deixou encantar, para depois te tirar de mim levando-te para tão longe? Não é justo, pois não?
És um ser único, dotado de asas, precisas de ser livre para ser feliz, não tinha o direito de te deter; até porque é assim que gosto de ti, gosto mesmo de ti assim. Não és uma mulher convencional, daquelas que sonham casar e ter filhos... o teu horizonte expande-se muito para além de um quotidiano dito ‘normal’. A tua missão na Terra é deambular, viajar por dentro e por fora, aceitar novos e cada vez mais audazes desafios... e isso não inclui outra pessoa, não me inclui a mim. Eu que ambiciono coisas tão simples, tão mais terrenas... o meu apartamento no último andar com vista privilegiada sobre a cidade que escolhi para viver, um carro desportivo, o sossego do monte na costa alentejana, o bulício da noite lisboeta onde te conheci e as viagens pontuais que me ofereço de presente para poder conhecer outras paragens e ter sempre o grato prazer de voltar com a certeza de que é aqui que pertenço.
Por amor, por ti, teria largado tudo... mas quanto tempo duraria? Eu não sou um ‘saltimbanco louco’, quando a febre da paixão esmorecesse acabaria por sentir falta da segurança de uma vida certa, com casa, carro, carreira e contas para pagar. Não se pode viver só de amor e eu não nasci dotado do teu instinto gregário, muito menos, de alma de viajante.
Sou um financeiro, minha querida. Fui treinado para ser um homem racional, frio e calculista. Estaria a negar a minha natureza se me armasse em adolescente inconsequente e abandonasse a vida que construi para ir atrás de ti. Cada um tem que perseguir os seus próprios sonhos e o teu é bem diferente do meu. Só sentes o apelo da partida porque eu não sou suficientemente importante para que não te restasse outra alternativa que não ficar. Vais perceber isso se um dia aparecer alguém que te vire a cabeça e te faça querer ficar e permanecer por tempo indeterminado.
Não me cabia a mim pedir-te que não me deixasses, até porque se o fizesse estaria a incorrer num erro tremendo... estaria a reclamar uma coisa que não se cobra: amor. E depois, se um dia corresse mal, atirar-me-ias em cara que havias desistido de tudo por mim. Não era razoável.
Vivi, então, esta paixão até ao fim.
Dizem que os amores de verão se enterram na areia... este custa tanto a enterrar. Talvez por ter sido o maior, o melhor, o mais intenso, o primeiro, o meu amor. Aquele que gostaria de ter vivido, aquele em que queria ter podido investir o melhor de mim por uma vida inteira. Esta foi a única vez em que me imaginei a casar e ter filhos... sabes quando tens a nítida sensação de que encontraste a pessoa certa?!
Só hoje fui capaz de fazer o balanço de tudo isto. Entrei no carro e deambulei por Lisboa, ausente de mim, mergulhei num processo analítico de introspecção para poder ter a faculdade de extravasar. Imbuído no espírito do dilúvio, varri recordações, fiz a retrospectiva e arrumei as ideias.
Parei no miradouro da Graça, contemplei a cidade do alto e tive a certeza de que, apesar de te amar apaixonadamente, é aqui que pertenço. Não poderia nunca viver noutro lado, num sítio onde a chuva não tivesse este cheiro e as lágrimas este sabor a sal a que chamamos saudade. Sou daqui, este é o meu mundo e o meu reino, não o posso abandonar. Só me resta ficar e permanecer à espera que um dia queiras voltar para assentar arraiais, porque se até mesmo os pássaros precisam de ninho, como os barcos de porto onde atracar, tu também hás-de precisar de um abrigo para onde voltar.
Lisboa é um lugar mágico onde a saudade também sabe a sol, porque há sempre uns braços estendidos para abraçar quem chega.

2 Comments:

  • At 1:14 da manhã, Blogger morg@s said…

    Mais uma vez me cativaste com esse teu texto... É incrível a maneira como tratas a saudade...
    Às vezes nem damos conta do tempo a passar, e quando nos apercebemos já é tarde demais para voltar atrás. E o que foi que fizemos neste tempo todo que já passou e que já não volta? tanta coisa mudou e nós nem nos apercebemos...
    Sentimos saudades do sol, da chuva, da lua, do amigo que nunca mais disse nada, do café que aquela pastelaria servia, e guardamos memórias de risos e de lágrimas, de bilhetes de cinema, de bilhetes que nos escreveram, e fotografias, porque sabemos que cedo ou tarde o tempo apagará a memória e já nem a saudade se fará sentir.
    Sentimos saudade da paixão e de tudo que nos já fez vibrar, viver e explodir de emoção. Às vezes sentimos saudade do amor, daquele amor. Às vezes sentimos saudades de sentir saudade. E vezes há em que parece que sentimos saudade do que nunca vivemos. Até a sentimos pelo que nos fez sofrer, mas só porque em tempos também nos fez sorrir.
    Eu?... sinto saudades do futuro :)

     
  • At 4:41 da tarde, Blogger DarZen said…

    Adorei este texto. Nasci em Lisboa e sempre lá vivi. Há 2 anos mudei-me e sempre que entro em Lisboa choro. Sinto saudade de tudo e acima de tudo precisamente do miradouro da Graça (o meu bairro). Sinto saudades do Sto. António e do cheiro das sardinhas, das ruelas de Alfama e da Mouraria e até das tascas e dos seus "residentes" já torcidos. Dos eléctricos que demoram tanto, do sobe e desce das colinas... As pessoas não se conhecem nas cidades - dizem. Eu nunca me senti tão só fora da minha e tua Lisboa. Obrigado pelo texto lindo.

     

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