No rasto do sol

terça-feira, setembro 06, 2005

Desarrumada


DEIXA-TE FICAR NA MINHA CASA

João Monge / João Gil


Tenho livros e papeis espalhados pelo chão
A poeira de uma vida deve ter algum sentido
Uma pista, um sinal de qualquer recordação
Uma frase onde te encontre e me deixe comovido

Guardo na palma da mão o calor dos objectos
Com as datas e locais. Porque brincas, porque ris.
E depois o arrepio: a memória dos afectos
Que me deixa mais feliz

Deixa-te ficar na minha casa
Há janelas que tu não abriste
O luar espera por ti quando for a maré-vasa
Ainda tens que me dizer porque é que nunca partiste

Está na mesma esse jardim com vista sobre a cidade
Onde fazia de conta que escapava do presente
Qualquer coisa que ficou, que é da nossa eternidade
Afinal, eternamente.

Deixa-te ficar na minha casa
Há janelas que tu não abriste
O luar espera por ti quando for a maré-vasa
Ainda tens que me dizer porque é que nunca partiste


*

Tenho a casa toda desarrumada... portas e janelas escancaradas. Quero vasculhar cadernos, diários, livros anotados e sublinhados, bilhetes... preciso devassar os avessos para encontrar os direitos. Uma desarrumação arrumada, a busca do sentido.

Até aqui, nunca estiveste comigo mas também nunca te foste embora. Vivemos nesta permanente ambivalência... a tua roupa não fica pendurada no roupeiro ao lado da minha mas, a tua mala também não sai de trás da porta do meu quarto.

Está sempre tudo desarrumado.

Quando não temos lugar certo para as coisas elas acabam por ficar sempre desarrumadas.

A ordem do caos... uma espécie de caos ordenado.

Desde miúda que tenho a mania de coleccionar objectos, aparentemente desprovidos de valor... pacotes de açúcar, post-its, recibos, maços de tabaco, isqueiros, pratinhas de chocolates... pequenos nadas que me permitam (tentar) eternizar momentos. Acho que sempre tive receio da voracidade do tempo e, por isso mesmo, procurei combatê-lo desenfreadamente.
As recordações alimentam e dão vida às memórias, emprestam-nos bocadinhos dos afectos que nem sempre pudemos guardar.
É como as fotografias... deve ser por isso que tenho tantas, espalhadas pela casa inteira... são os sorrisos que nunca se perdem, os amores que não acabam, os rostos que não envelhecem.

Deve ter sido a angústia do envelhecimento que se apoderou de mim e me fez desarrumar a casa toda. De repente, de um momento para o outro, tomei consciência de que também para mim o tempo está a passar, depressa, demasiado depressa.
Qualquer dia olho em volta e só me restam coisas desarrumadas, objectos antigos, folhas de papel amareladas pelo tempo.

Sinto um arrepio involuntário percorrer-me a espinha.

Há um cigarro a queimar no cinzeiro... não me lembro de o ter acendido.

Como é possível ter guardado tanta tralha?!
Como é possível reencontrar-me nesta tralha toda e sentir-me estupidamente feliz, como se tivesse encontrado um amigo que há muito não via?!
Há aqui muita coisa de cujo o significado já me esqueci... há aqui bocadinhos de mim, e do que fui, dos quais já não me lembrava. Isto sou eu, arquivada... afinal, descubro que somos o somatório das nossas vivências e isto é o que retive dessas vivências. Eu sou a minha tralha... arrumada e desarrumada.

Destas lembranças fazem parte pessoas que, por esta ou aquela razão, deixaram de estar na minha vida há muito tempo mas, curiosamente, acabo por descobrir que também nunca deixaram de fazer parte dela.

Saudades. Saudade, esse sentimento tão estranho, tão nosso, tão português, tão inexplicável. Desarrumei as saudades.

O problema não reside no que temos desarrumado e sim no que já está arrumadinho.

Não te quero arrumar... tens o teu lugar no meu passado, mas ainda fazes muito parte do meu presente e das minhas desarrumações. Essa deve ser a razão porque nunca partiste.
*
(Não era suposto que esta música fizesse parte deste texto, isso acontece unicamente por acaso, a estória do "deixa-te ficar na minha casa" ainda está por escrever...)